Prólogo: Águas Neutras
Golden, Colônia Britânica
21 de março de 1992
Golden, Colônia Britânica
21 de março de 1992
Da próxima vez, terei que desistir dela.
Nesta vida estamos indo bem. Nosso curso é definido. Nosso velho desastre aparece adiante. Tremo minha caneta enquanto escrevo estas palavras:
Eu não posso salvá-la.
Faz um mês desde que ela me encontrou na livraria. Um mês desde que ela se apresentou, desta vez como Luce, e é tão esquisito rever sempre o jeito doce como ela colocava o cabelo atrás da orelha antes de apertar minha mão. Um mês andando de mãos dadas,todas as tardes,quando a levo para casa depois da escola.
Tenho curtido cada centímetro dela. Tenho saboreado toda sua pele macia, tão concentrada em seus cadernos. Nada é mais amargo do que neste mês de euforia. É a mesma coisa com o amor de cada vida.
Eu sou um tolo por querê-la. Especialmente com o fim tão próximo.
Eras atrás, Gabbe me disse para não escrever este livro

Se eu nunca tivesse escrito “Os Sentinelas: Mito na Europa Medieval”, não teria deparado com Luce revirando as prateleiras na biblioteca da faculdade que sua irmã freqüentava. Ela nunca teria me convidado para andar pelo campus para encontrar Vera depois da aula, nunca teria coragem naqueles dez minutos para me dar seu número de telefone no verso de um recibo de farmácia. Nós nunca teríamos terminado na casa de seus pais naquela noite. Nunca teria andado desviando da neve no caminho por trás de sua cabine, conversado por horas, rindo como se nos conhecêssemos há séculos.
Nós nunca teríamos nos apaixonado.
E ela não estaria vivendo seus últimos dias.
Não. Mesmo aqui, nestas páginas privadas, porque fico me iludindo?
A verdade?
Lucinda teria me encontrado, independentemente do meu livro estúpido. Assim como ela sempre faz. Ela teria me rastreado e me encontrado com uma rapidez inexplicável. E como sempre, teria se apaixonado. Pela milésima, e pela primeira vez em sua vida.
E por que não? Não é tortura para ela… Até o final.
Isso significa que cabe a mim mudar isso.
Porque, como o céu é o meu testemunho, eu não posso continuar assim. A agonia de mais uma perda vai me oprimir. Me enlouquecer.
Tendo que vê-la mais uma vez nas chamas…
Eu não posso.
Deixarei que estas páginas sirvam como um registro: Terei 17 anos para tirá-la da minha alma, e sei que conseguirei. O vício vai desaparecer. A dor de esquecê-la não será difícil.
Será que é mesmo possível? Que um dia o amor vai afrouxar o controle sobre mim? Até que ela vire apenas uma memória, não uma droga que tenho que ter? É muito difícil imaginar, mas é a única opção que me resta.
Se eu puder fazer isso por ela, Lucinda vai viver uma vida longa e saudável

Ela vai amar, amadurecer e encontrar a felicidade. Todas essas coisas que ela nunca conheceu antes. Tudo
sem mim.
É muito tarde agora, mas não vai ser pra sempre. Já comecei os preparativos para o nosso próximo encontro daqui a 17 anos.
Como salvá-la. Como me afastar.
Ontem, fui a uma reunião.
Havia um panfleto sobre o ponto de ônibus na esquina da Grand and Calgary Doze Passos para superar o seu vício. Eu estava nervoso e agitado, após cinco horas sem vê-la. Cinco horas. Era o tempo que eu costumava esperar até ela chegar em casa depois da escola, para que eu pudesse tê-la em meus braços.
Os momentos que eu guardo comigo não são os momentos em que ela morreu. Assim que eu beijei, que eu senti que teria que fazer isso, ela foi levada para longe de mim.
Eu sei que isso sempre acontece,mas nunca foi fácil de controlar.
Então eu memorizei o endereço

Eles assentiram e me acolheram. Eles disseram: Conte-nos sobre o seu ápice.
No outro dia. Por exemplo. Fui mais longe do que de costume com a minha droga de escolha. Uma caminhada na mata, isso é tudo. Neve caindo, sol queimando por entre as árvores, e ela. Aposto que ninguém nunca se sentiu mais vivo. Era como se eu não pudesse ser mais do que aquilo. Eu sabia que poderia ter me dado mal, eu sabia que eu estava correndo o perigo de uma overdose. Mas um tentador beijo seria lindo. A verdade é que toda vez que acontece,é viciante.Cada momento ultrapassa limites.
Eles disseram: Agora descreva o fundo do poço.
Vazio. Desde o primeiro momento eu tentei evitar que escapasse. Um vácuo absoluto rasgando meu corpo, puxando para fora qualquer coisa vital que tinha. Pesava onde deveria flutuar. Era pior que o inferno.
Então eles disseram: Então valeu a pena?
E eu caí em silêncio, porque é tudo que eu tenho. E não, não vale a pena.
E esses bastardos me olharam como se eles entendessem.
Algumas pessoas dizem que eu tenho mania de grandeza, mas não é o caso. Me vi em todas as almas tristes das pessoas à minha volta na reunião. Minha expressão se identificava com as de cada um. Suas peles eram amareladas e seus olhos eram fundos

Mais fácil… Não para mim.
Eles falavam de romance com nostalgia, e de certa forma, invejo isso. Mas acontece que, nestas reuniões, suas vidas cotidianas não tem nada a ver com a minha.
Um dia de cada vez para mais de sessenta anos é uma gota no oceano comparado ao que eu vejo. Uma eternidade de dias sem a única coisa que me completa. Um vazio escancarado, sem comparações.
Havia também o problema de Deus.
Eles disseram: Deixe que ele te restaure a sanidade. Vire-se para Ele.
E vi claramente suas expressões de decepção quando eu lhes disse,com franqueza, que este é um julgamento de Deus que não me favorece. Eu sabia o que eles estavam pensando: Com o tempo, com algumas reuniões e mais alguma perspectiva,conseqüentemente,eu certamente conseguiria. Eu gostaria de poder.
Por outro lado, eu saí da reunião percebendo uma coisa mais claramente do que antes:
Meu vício não está me matando. Eu sou a coisa tóxica que está matando ela.
Eu pisei nas sombras atrás da igreja, deixei minhas asas desenrolarem e se abrirem.
Nunca me senti tão impotente. Mesmo que eu voe para longe, no céu branco como a neve, acima da nevasca que estava esperando por dias. Minhas asas não poderiam me salvar. Minha natureza não pode me salvar. É minha alma que tem um trabalho a fazer. Eu preciso fechar a porta pesada sobre ela.
Na próxima vida.
Nesta vida, eu já fui longe demais. Não adianta parar agora.
Está começando a nevar de novo e eu tenho que encerrar.Há uma festa de patinação no gelo a noite na casa de Luce. Vera convidou todos os seus amigos, e prometi que iria.
É isso.
Vou me revelar. Eu sei o que está por vir. E eu vou amá-la e até o último momento. Esta será a última Lucinda que morre em minhas mãos.
Da próxima vez, vou desistir dela.
DG
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